A OUTRA METADE
[LA OTRA MITAD]
Nós, todos os animais Temos o dom mágico de sentir que existimos. As pedras e as locomotivas, os tubérculos e os frutos
não reconhecem a doçura do ar e do carinho da água,
nem sentem a emoção de se aconchegarem uns nos outros. Mas, para nós, os animais, a vida pode ser bela.
As guirlandas estão prontas, estão prontas as
correntes, as facas, as gaiolas, os presentes. Em
breve saborearemos mais ainda a alegria pelo fato de
estarmos reunidos. Em breve os golpes, as facadas
matarão mais do que normalmente. E os votos de "Paz na
terra" e os votos de "felicidades" navegarão
tranquilamente sobre um mar de sangue ainda maior do
que o habitual. Muitos animais irão à grande festa: os vivos estarão
em volta da mesa e os mortos, colocados no meio. Pois
o mundo, como é dito, é feito de duas metades, uma
nascida para reinar e a outra para morrer.
Haverá pinheiros, papais noéis super simpáticos,
presépios com um boi e um menininho. O boi não sentirá
o cheiro do pinheiro nem o da palha. Ele terá o fôlego
rouco do animal que cai; a vida escapará por sua
garganta cortada; e, em seguida, os papais noéis
repartirão seus membros com as criançinhas.
Em breve chegará o Reveillon, a noite dos 'bon
vivants' com suas barrigas de cemitério. Leitões que são amputados de seus rabos e de seus
dentes, bezerros que são arrastados de joelhos para a
derradeira viagem. Vocês, os mutilados, os
prisoneiros, os asfixiados, os engordados à força, os
eletrocutados, os estripados, a quem vocês se dirigem
clamando piedade?
Os 'bons vivants' com suas vozes melodiosas já cobrem
seus gritos e ignoram seus lamentos. Eles falam de
dons culinários e de forros de mesa rendados, eles
celebram as talentosas mãos calosas (que seguram os
facões, os funis, as redes) e o talento imenso de
excitar as papilas gustativas cozinhando seres mortos.
Ou você fala a língua deles ou você é um desmancha
prazeres. Para fazer parte da família é necessário
organizar... |
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Natal ou Ano Novo sem perú, sem patê de fígado, sem
salmão, sem caviar, sem ostras, sem leitão, sem mousse
de pato, sem lagosta, sem chouriço, sem caviar...
faltaria o essencial! Ter convidados e não oferecer
carne, isso não se faz! Imagina, são nossos
convidados, e devemos honrá-los, devemos provar-lhes
nossa estima, mostrar como somos bons anfitriões ! Macabra comunhão paga com o preço de um sacrifício.
Veja como te honro, imolei para você inúmeras vítimas!
Somos seres iguais, dignos de ceifar as vidas daqueles
que pertencem á outra metade. Nesses tempos generosos, os mais pobres não serão
esquecidos. Na França, são realizadas festas de
reveillon humanitárias, e os pobres também receberão
suas devidas partes de paté de fígado gordo. Depois
seraão mandados de volta para gelarem nas ruas,
ungidos de dignidade.
Eu que não tenho nem plumas, nem peles, nem
espinhas... eu, que sou, pela minha aparência, da raça
dos sangradores. Como eu gostaria de agradá-los, como
eu queria que eles me aceitassem, eu fingi acreditar
na fábula das duas metades. Eu sabia, tanto quanto
eles, saborear o gôsto do assassínio e sabia rir
espalhafatosamente dos cadáveres deliciosos. Mas,
estar com eles custa muito caro. Gostaria ainda assim que eles me amassem e gostaria de
poder amá-los, mas vejo claramente que eles esmagam
com sangue frio aqueles da outra metade, dos quais
também faço parte. Nunca mais estarei do lado dos
carcereiros. No dia da grande festa, se apenas
existirem dois campos, escolherei o outro lado. Tirem-me as vísceras como fazem com os esturjões ainda
vivos. Explodam meu fígado, como o fazem com o dos
patos. Arranquem meus testículos, como o fizeram com
os outros animais que foram capados. Esquartejem-me,
como fazem com as rãs. Fervam-me, como as lagostas são
fervidas. Que dentes sorridentes coloquem minha carne
em farrapos como aquela dos outros perús, bezerros,
cordeiros e salmões. É realmente necessário escolher entre o pior e o pior?
Reunir-se aos supliciados que agonizarão abandonados
de todos; ou bem aos assassinos que, risonhos,
lambendo os beiços, apontam para o matadouro ? Não, não, não, não ! |
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Eu denuncio ! Denuncio a mediocridade e a covardia de desprezar os outros para assim se assegurar de sua própria importância. Denuncio o espírito comunitário que é construído tendo como base a exclusão. Podemos criar laços de formas diferentes, sem termos que ser cúmplices dos mesmos crimes. Esqueçamos o odioso mito do mundo dividido em duas metades, esqueçamos a sinistra máquina que fabrica a infelicidade. Quero que existam, de verdade, os papais noéis gentis,
a paz sobre a terra e a fraternidade. Que possa
florescer o calor animal e a alegria de existir de
porquinhos brincalhões, de patinhos amorosos e de
seres humanos risonhos. Para todos nós, os animais, a vida pode ser mais bela. Que, enfim, a verdadeira festa comece, |
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a festa sem sacrifícios ! |
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